Neste Ac. TRP 10.07.2013 (Eduardo Petersen Silva), o Tribunal da Relação do Porto foi chamado a pronunciar-se sobre os seguintes factos:
1. O Autor exercia ao serviço da Ré as funções de operário
de recolha de resíduos.
2. A R. procedeu
disciplinarmente contra o A. por se encontrar com taxa de alcoolemia de 2, 3
gr/litro quando se encontrava no exercício da sua categoria
profissional
3. No dia 14 de Fevereiro de 2121,
pelas 17,45 horas o Autor encontrava-se no interior da viatura de matrícula
..-..-ZB que executa o circuito no concelho de … em cumprimento do serviço de
recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos.
4. Tal viatura despistou-se e tombou para o lado
direito.
5. No momento do acidente o Autor
encontrava-se com uma taxa de alcoolemia de 2,3 gr/litro de
sangue.
6. Não existe qualquer regulamento ou
norma interna da Ré que proíba os seus trabalhadores de consumir
álcool.
7. O Autor nunca antes foi punido
disciplinarmente pela Ré.
Segundo o TRP, a nota de alta destinava-se à Companhia de Seguros, no âmbito de um processo de acidente de trabalho, mas não à empregadora. Com efeito, para o Tribunal, apenas a Companhia de Seguros tem acesso aos dados relativos às lesões e aos dados de internamento e assistência hospitalar porque "interessam à sua responsabilidade transferida".
O teste em causa terá sido realizado no hospital e na sequência do acidente ocorrido com a viatura. Todavia, não ficou provado que tenha sido o trabalhador a apresentar o relatório médico ao empregador, no qual era feita referência ao teste de alcoolemia a taxa de álcool no sangue.
Com fundamento nos arts. 26.º da CRP, 16.º, n.º 2, e 17.º, n.º 1, al. b), do CT, o TRP entendeu que a informação sobre um aspecto do
estado de saúde não pode ser exigida, salvo se a natureza das funções a
desempenhar o justificar e se isso, esta fundamentação, o propósito de recolha
da informação, constar de documento escrito fornecido ao trabalhador. E mais:
prestada ou recolhida a informação, quem a recebe não é o empregador mas o
médico, e este não pode prestar nenhuma informação sobre o estado de saúde do
trabalhador, na verdade só pode prestar a sua conclusão sobre a conciliação do
estado de saúde que observou com a natureza do trabalho a realizar, no binómio
apto/não apto.
Por força do art. 19.º, n.ºs 1 e 3, do CT, ainda que se tratasse da protecção da segurança do trabalhador ou de terceiros, o empregador devia ter comunicado, por escrito, a fundamentação ao trabalhador. Todavia, mesmo nesse caso, o empregador apenas poderia saber se ele estava apto ou não apto para desempenhar a actividade.
O TRP conclui nos seguintes termos:
Dúvidas portanto sobre a recorrente não poder ter acesso à análise
de sangue do trabalhador e à taxa de álcool nela encontrada? Nenhumas. É um dado
relativo ao estado de saúde do trabalhador que a recorrente nunca podia
conhecer.
Ainda que com algumas limitações, o TRP reconhece, porém, que se o trabalhador tivesse dado a informação à empregadora, o acesso era válido e a prova podia ser livremente usada.
Não sendo assim, a prova é nula por violação da garantia constitucional prevista no art. 32.º, n.º 8, da CRP:
São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
Por conseguinte, o TRP eliminou da matéria assente o seguinte facto: O A. apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,3g/l.
Sobre a ilicitude da prova, podemos citar os seguintes Acórdãos:
Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil (Ac. TRP 15.4.2010 (Teixeira Ribeiro))
Por ser ilícita e nula, não pode ser atendida como prova em processo judicial cível uma gravação de conversação telefónica estabelecida entre as partes (Ac. TRG 16.2.2012 (José Raínho))
Todavia, segundo o Tribunal Constitucional, neste Ac. 607/2003 (Benjamim Rodrigues), o art. 32.º, n.º8, da CRP impõe condicionalismos formais ao acesso aos meios de prova que representem uma intromissão na vida privada e restrições à valoração de provas com obediência ao princípio da proporcionalidade e respeitando a dignidade e integridade da pessoa humana. No entanto, o TC admite que a consideração do interesse público geral na investigação dos ilícitos penais, a prossecução da verdade material e a realização da justiça se sobreponham, acauteladas as devidas reservas, às necessidades de tutela da sua esfera de privacidade, não sendo assim de afastar, dentro do domínio tido por admissível, uma valoração das descrições constantes de diários em processo penal, conquanto esta não se mostre desadequada, desnecessária e desproporcionada face aos valores e ao tipo de decisão em causa.
Nesse sentido, coloca-se a questão de saber se a utilização do teste de alcoolemia realizado por entidade oficial no âmbito de procedimentos habituais subsequentes a acidentes rodoviários se trata de uma intromissão abusiva na vida privada do trabalhador.
Cumpre fazer referência à segunda parte do Acórdão.
Para este Tribunal, o empregador devia ter elaborado uma norma interna com a proibição do consumo de álcool. Não o tendo feito, não pode fundamentar a decisão disciplinar no bom senso ou no facto de os veículos de recolha de resíduos sólidos terem equipamentos de alguma complexidade e que obrigam a um elevado grau de concentração para evitar a ocorrência de acidentes.
Devido à sua inegável relevância, não podemos deixar de ter presentes as palavras do Tribunal:
Vamos desconsiderar, como já
se viu, a tal questão do nexo causal. Não temos adquirido que o condutor fosse
com álcool, mas mais grave do que isso, não temos alegação de facto de que
resulte que o aqui recorrido tivesse conhecimento de que o condutor ia com
álcool. Na verdade, não foi alegado quando e em que circunstâncias é que o
álcool foi consumido por ambos. E não é evidente que quem tem 1,79 de álcool
esteja visivelmente alcoolizado. Por isso, toda a tese do comportamento causal
do A. cai por terra.
Vamos ainda desconsiderar
toda a alegação sobre a complexidade dos equipamentos. Com o devido respeito,
não percebemos: - que tipo de carro de lixo era, se era um que triturava, se era
só uma carrinha de caixa aberta para transporte de electrodomésticos usados,
qual era a actividade concreta do trabalhador, o que é que ele tinha de fazer,
se a complexidade resultava do facto de ter de abrir a porta e sair do carro
para ir pegar nos resíduos e lançá-los para cima do camião, ou se era mesmo mais
complexo, como puxar uma alavanca na parte de trás do camião, que faz subir os
caixotes de lixo e entornar o seu conteúdo para dentro do tambor triturador. E,
que operações são essas que o trabalhador, acompanhante, tem de realizar dentro
do camião? Com que equipamentos complexos, em que botões tem ele de carregar?
Isto pois para dizer que se alguma complexidade existe, devia ter sido alegada a
factualidade donde ela resultasse.
É que ela,
decididamente, não resulta do bom senso. É do bom senso que resulta a norma que
proíbe o consumo de álcool, ou o estar alcoolizado? O bom senso não é fonte de
direito, antes fosse. E no caso do consumo de álcool e da execução da prestação
laboral, digamos que o bom senso tem mil e mais facetas: - depende do tipo de
prestação laboral e do tipo (quantidade e consequências da quantidade) de
consumo. Vamos dizer que, e sem qualquer carácter pejorativo, não resulta do bom
senso que um “almeida”, um “homem do lixo”, não possa beber uma cerveja ao
almoço, e ir trabalhar a seguir. Ou não possa, consoante as suas funções
concretas, beber bastante mais ao almoço. É evidente que o motorista do camião
não pode beber. Mas o acompanhante?
O que a
recorrente podia ter dito, na nota de culpa, é que é do bom senso, ou melhor, é
da experiência normal das coisas que quem tem 2,3g/l de álcool no sangue talvez
não esteja nas melhores condições para executar o trabalho, e que a norma
infringida pelo trabalhador não é a violação de regras de segurança e higiene e
saúde (porque falta a alegação dos factos concretos pelos quais o trabalhador
concreto estaria tão perdido, passe a expressão, que provocaria acidentes, para
si e para os outros) mas o dever de executar o trabalho com zelo e diligência
(posto que também precisássemos de factos concretos, mas ainda assim aqui era
mais fácil defender que o recorrido estaria mais lento a fazer o trabalho (qual?
Sabemos que ele ia no carro, sabemos qual era o itinerário, mas não se ainda
havia alguma coisa a recolher, se era pelo contrário o carro que estava a
recolher porque, às 17.45, estes trabalhadores já estavam prontos para ir para
casa).
Embora na motivação já se fale no dever de
executar o trabalho com zelo e diligencia, a verdade é que isso não consta da
nota de culpa, e por isso, não podendo o trabalhador defender-se oportunamente,
o facto não pode ser considerado nessa vertente violadora.
A norma resulta ainda do bom senso na medida em que a actividade
da Ré é de interesse público? Estamos a falar dum piloto de avião? É de
interesse público, mas as funções concretas, a nós aportando pela mera via da
categoria profissional, portanto genericamente, são as que são, e o trabalho não
exige senão a sua realização. Não há nenhuma exigência especial que faça com que
o trabalho não possa ser realizado com o trabalhador a pensar no que quiser, com
ar mais satisfeito ou carrancudo, mais lúcido ou pelo contrário um pouco tonto.
É que a recorrente esquece-se também de alegar os factos dos quais o prejuízo
público para a sua imagem resulta: - o trabalhador andava aos tombos e aos
pontapés aos resíduos, murmurando palavras desrespeitosas em língua geralmente
incompreensível?
A recorrente aliás confunde-se:
não é por ter conhecimento da taxa e não agir que o seu prestígio fica afectado
e assim lhe é causado um prejuízo sério. Se é, isso deve-se ao seu comportamento
(proceder ou não proceder), não ao do trabalhador.
O prejuízo para a sua imagem (e de resto convenhamos que a
afirmação de que seria censurada pelo cliente e que isso acarretaria grave
prejuízo é completamente conclusiva e manifestamente exorbitante) resultaria do
comprovado cumprimento defeituoso do trabalho, pelo trabalhador, associado ao
comprovado comportamento embriagado em público (note-se, com álcool, o
trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar
frigoríficos sobre camiões, e por isso, na alegria da imensa diversidade da
vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito
produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos).
A norma violada não decorre, porque também o
desconsiderámos porque não provado, dalguma menção em acção de formação. Aliás,
é a recorrente quem o diz, não tinha de emitir norma nenhuma.
Em suma, não há nenhuma norma sobre segurança, saúde e higiene no
trabalho emitida pela Ré à qual o trabalhador tivesse desobedecido.
Continuando:
E vindo à quarta questão, se não há uma
norma violada, como é que se afirma uma infracção e como é que se parte para
qualificar a infracção como grave? Repare-se que a recorrente entende que a
norma violada é (vamos esquecer as inúmeras violações de deveres que apontou ao
facto na motivação, porque não foi disso que acusou o trabalhador) a de
segurança, saúde e higiene, e que a particular gravidade da infracção resulta do
perigo para a saúde do recorrido e dos colegas e até de terceiros. E ainda que
resulta do facto de ser uma actividade de interesse público (o que já vimos não
está suficientemente concretizado). Factos, para estas fontes de violação e de
gravidade, são nenhuns.
Ora aqui, há um exercício
de sagacidade futura, que se resolve da seguinte maneira: basta emitir uma norma
interna a estabelecer que o limite de álcool é de 0,50 g/l (para evitar que os
trabalhadores se despeçam todos em caso de tolerância zero, vamos convir que o
trabalho não é agradável) dar conhecimento dela aos trabalhadores, e futuras
violações da norma acarretam imediatamente a violação de um dever laboral
(obediência) sem que seja questionável a norma (porque ela convocará a si, como
fundamento, todas as considerações que a recorrente produziu nos autos a partir
do dito bom senso) e sem que seja de futuro necessário estar a alegar e a
concretizar plúrimos factos sobre o efeito do álcool em cada trabalhador
concreto. Escusado será dizer que o bom senso nos diz também que o efeito do
álcool varia de pessoa para pessoa, em função do género e da massa corporal, e
da quantidade de alimento ingerida em simultâneo com o álcool.
Sobre esta segunda parte faremos apenas menção à informação disponibilizada pela Organização Internacional do Trabalho na seguinte monografia:
Problemas ligados ao álcool e a drogas no local de trabalho - uma evolução para a prevenção, OIT, 2003
Segundo parece, cerca de 40% dos acidentes de trabalho envolvem ou estão relacionados com o consumo de álcool.
Talvez, no fundo, a razão de ser dos acidentes de trabalho esteja (mesmo) na vontade de esquecer as agruras da vida...
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