Este blog (sobre)viverá da aplicação do Direito ao caso concreto...

29 de abril de 2014

O trabalho no domicílio e o teletrabalho


O paradigma tradicional de relações laborais assenta na prestação de trabalho inserida em organização alheia, em local controlado pelo empregador (por exemplo, uma fábrica ou um escritório), com instrumentos de trabalho disponibilizados pelo empregador (por exemplo, um camião ou um computador) e em cumprimento de um horário de trabalho previamente fixado.

Este paradigma convive atualmente com outros modelos laborais que, paulatinamente, têm vindo a ganhar importância. Analisemos, hoje, o trabalho no domicílio e o teletrabalho.

O trabalho no domicílio assume duas modalidades: a) prestação de atividade, sem subordinação jurídica, no domicílio ou em instalação do trabalhador; e b) aquisição da matéria-prima pelo trabalhador e fornecimento do produto acabado, por certo preço, ao vendedor. Em qualquer dos casos, o trabalhador deve estar na dependência económica do beneficiário da atividade.

Este tipo contratual pode ter por objeto o trabalho manual (v.g., sapateiro) e o trabalho intelectual (v.g., atividades informáticas ou de contabilidade) e apresenta os seguintes traços gerais: a) o trabalhador no domicílio é abrangido pelos regimes de segurança e saúde no trabalho e de acidentes de trabalho e doenças profissionais; b) o trabalhador no domicílio tem direito a formação profissional; c) a remuneração deve ter em conta os valores aplicáveis a idêntico trabalho prestado no estabelecimento do empregador e aos encargos do trabalhador inerentes ao trabalho no domicílio; d) o trabalhador no domicílio tem direito a um subsídio anual igual ao duodécimo da soma das remunerações auferidas em cada ano civil; e) o beneficiário da atividade deve manter um registo atualizado de trabalhadores no domicílio; e f) o contrato pode cessar por iniciativa de qualquer das partes, mediante comunicação escrita.

Por seu lado, o teletrabalho consiste na prestação laboral com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação.

Este tipo contratual tem as seguintes características: a) descentralização do local de trabalho (v.g., domicílio do trabalhador, centros de trabalho partilhados, estabelecimentos do empregador distantes da sede principal ou, no caso de trabalhadores nómadas, o local onde se encontre a cada momento); b) recurso às tecnologias de informação e de comunicação (v.g., "online", "offline", "one way line", "two way line"); c) os instrumentos de trabalho pertencem, em princípio, ao empregador; d) o trabalhador tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores, nomeadamente no que se refere à formação e promoção ou carreiras profissionais, limites do período normal de trabalho e outras condições de trabalho, segurança e saúde no trabalho e reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doenças profissionais; e) o empregador deve evitar o isolamento do trabalhador, através de contactos regulares com a empresa e os demais trabalhadores.

Estes tipos contratuais colocam problemas de compatibilização entre o controlo da atividade e a proteção da privacidade e do descanso do trabalhador e do seu agregado familiar (por exemplo, quando o trabalho seja desenvolvido no domicílio do trabalhador, o beneficiário da atividade e o empregador podem visitar o local de trabalho entre as 9 e as 19 horas, na presença do trabalhador ou de pessoa por ele designada).

O trabalho no domicílio e o teletrabalho têm inegáveis vantagens para as empresas (v.g., a redução de custos associada a menores instalações, maior flexibilidade na organização do trabalho, contratação e manutenção dos melhores profissionais, menores riscos de conflitos laborais) e para os trabalhadores (v.g., redução ou eliminação das deslocações diárias, flexibilidade temporal e maior integração na vida familiar). Contudo, existem também desvantagens para as empresas (v.g., maior dificuldade de controlo e supervisão da atividade) e para os trabalhadores (v.g., dificuldade acrescida de separação do trabalho da vida familiar).

Face ao exposto, cabe às empresas e aos trabalhadores escolherem o modelo contratual que melhor se adeque à situação concreta.

Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 22.04.2014.

22 de abril de 2014

A flexibilidade nos cargos de direção

A flexibilização da legislação laboral é frequentemente apresentada com um pressuposto indispensável da competitividade da economia portuguesa e da sua capacidade para atrair investimento externo.

De acordo com o índice de rigidez da legislação laboral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), relativo aos despedimentos individual e coletivo, entre 2008 e 2013 verificou-se uma convergência no nível de proteção conferido nos diversos Estados-membros da OCDE. Portugal registou, porventura, o ajustamento mais significativo, passando de 4,4 para 3,2. Trata-se de um valor ainda superior à média dos Estados-membros da OCDE (incluindo a media dos países que integram a União Europeia).

Embora possa ser merecedor de várias críticas – nomeadamente porque não permite uma comparação global e ponderada dos sistemas jurídicos –, este índice é um importante elemento de análise que não deve ser desprezado ou subvalorizado.

Em nossa opinião, a legislação laboral portuguesa dispõe de vários instrumentos de flexibilidade interna e externa da relação de trabalho. Importa conhecer, hoje, a figura da comissão de serviço.
O Código do Trabalho permite a celebração de um contrato de trabalho em regime de comissão de serviço para o exercício de cargo de administração ou equivalente, de direção ou chefia diretamente dependente da administração ou de diretor-geral ou equivalente, bem como o desempenho de funções de secretariado pessoal de titular desses cargos.

É, ainda, possível que instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (por exemplo, contrato coletivo de trabalho ou acordo de empresa) prevejam esta modalidade de contrato para o exercício de funções cuja natureza suponha especial relação de confiança em relação a titular dos cargos acima referidos e funções de chefia.

A comissão de serviço pode ser interna ou externa, consoante se trate de um trabalhador da empresa ou outro admitido para o efeito. Vejamos dois exemplos. No primeiro caso, um técnico administrativo da empresa pode passar a exercer o cargo de diretor administrativo em regime de comissão de serviço. No segundo caso, a empresa procede ao recrutamento de uma pessoa para exercer o cargo de diretor-geral.

Coloca-se a questão de saber qual é o seu principal traço distintivo.

Em conformidade com o disposto no Código do Trabalho, qualquer das partes pode pôr termo à comissão de serviço, mediante aviso prévio, por escrito, com a antecedência mínima de 30 ou 60 dias, consoante aquela tenha durado, respetivamente, até 2 anos ou período superior. A especialidade reside, portanto, no regime "simplificado" de cessação do contrato de trabalho. Com efeito, o empregador pode promover a cessação do contrato mediante declaração dirigida à contraparte sem necessidade de fundamentá-la em motivos disciplinares ou ligados à empresa.

Caso se trate de uma comissão de serviço externa (veja-se o exemplo do cargo de diretor-geral) sem acordo para a permanência após o seu termo, o trabalhador tem direito à compensação prevista para o despedimento por razões objetivas (por exemplo, o despedimento coletivo).

Por seu lado, caso se trate de uma comissão de serviço externa com acordo para permanência na empresa após o seu termo, o trabalhador tem direito a exercê-la ou a resolver o contrato de trabalho com direito à compensação acima referida.

Por fim, caso se trate de uma comissão de serviço interna (veja-se o exemplo do cargo de diretor administrativo), o trabalhador tem direito a retomar a atividade anteriormente desempenhada ou a correspondente à categoria a que tenha sido promovido. Todavia, o trabalhador poderá igualmente resolver o contrato de trabalho com os mesmos efeitos.

Em suma, a comissão de serviço permite uma mobilidade funcional interna não permanente e a contratação externa de trabalhadores para cargos de especial relevo na estrutura organizacional sem o "peso" do regime-regra dos despedimentos.


Nota: artigo publicado no Jornal Oje de 15.04.14.

15 de abril de 2014

O “GPS” e o controlo da atividade do trabalhador

A "pedra-de-toque" do contrato de trabalho reside na subordinação jurídica do trabalhador ao empregador. Sobre esta noção há uma vasta produção doutrinária e jurisprudência de aquém e além-fronteiras. No essencial, o trabalhador encontra-se inserido na organização do empregador, ao qual compete dirigir, corrigir, adaptar, fiscalizar e disciplinar a atividade prestada.


A tecnologia tem aumentado fortemente a capacidade de controlo da atividade do trabalhador e, consequentemente, restringido a esfera de privacidade ou de liberdade do trabalhador. Compreende-se que o empregador possa fiscalizar o cumprimento da prestação de trabalho e que possa recorrer aos instrumentos disponíveis, desde que não coloque em crise a reserva da vida privada, os dados pessoais e a imagem do trabalhador.


Hoje em dia, estamos contactáveis em (quase) todos os lugares e (quase) a qualquer hora. Verifica-se, por um lado, uma diluição progressiva da diferença entre local de trabalho e residência; por outro lado, durante o horário de trabalho os meios de comunicação (e-mail, telefone, telemóvel ou smartphone) impõe uma intensidade crescente da prestação laboral.


Sem prejuízo de uma abordagem posterior de outras questões associadas à tecnologia no local de trabalho, cumpre referir a utilização do GPS (sistema de posicionamento geográfico) nas organizações laborais. Com este equipamento, podemos saber a localização de uma pessoa, através de um recetor de sinais de GPS, o qual calcula a latitude, a longitude e a altitude do lugar onde se encontra.


Ora, o Código do Trabalho determina que o empregador não pode utilizar meios de vigilância à distância no local de trabalho, mediante o uso de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador. Todavia, essa utilização será admissível, desde que tenha por finalidade a proteção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade o justifiquem (por exemplo, sistemas de videovigilância de pessoas e bens).


Em 2007, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que esta proibição dizia respeito às formas de captação à distância de imagem, som ou imagem e som que permitam identificar pessoas e detetar o que fazem, quando e durante quanto tempo, de forma tendencialmente ininterrupta (por exemplo, câmaras de vídeo, microfones, escutas, entre outras). O carácter intrusivo destes meios seria suscetível de afetar o direito à reserva da vida privada e o direito à imagem do trabalhador.


Com efeito, o GPS permitia saber a localização e os percursos realizados e, indiretamente, conhecer a localização geográfica e os movimentos do trabalhador. Todavia, o tribunal entendeu que este equipamento não tinha a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador, porque não permitia controlar a atividade do trabalhador durante as visitas aos clientes.


Em novembro de 2013, o Supremo Tribunal de Justiça veio confirmar este entendimento, porquanto decidiu que o GPS instalado na viatura permite apenas conhecer a sua localização geográfica em tempo real, mas não fiscalizar a atividade do trabalhador. Este tribunal admitiu a utilização dos dados provenientes dos registos do GPS no procedimento disciplinar instaurado ao trabalhador, visto que o seu estatuto jurídico (de cidadão e de trabalhador) não lhe confere um espaço de proteção e de impunidade.


Deve referir-se que, em ambos os casos, a viatura com GPS destinava-se a uso profissional, isto é, não estava em causa a utilização pessoal ou privada da viatura de serviço.


Ainda que se considerasse um meio de vigilância à distância no local de trabalho, sempre se dirá que o GPS pode ter uma finalidade de proteção e segurança de pessoas e bens, visto que o trabalhador pode sinalizar uma situação de perigo ou de emergência, dando a indicação do local em tempo real e permitindo uma atuação mais célere dos meios de socorro apropriados (por exemplo, furto do veículo, catástrofe natural, tumulto social ou sequestro).


Uma última nota: a utilização de meios de vigilância à distância no local de trabalho está sujeita a autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados e deve ser justificada de acordo com critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade.




Nota: artigo publicado no Jornal Oje de 08.04.14.




Os casos jurisprudenciais referidos no texto poden ser consultados aqui (2007) e aqui (2013).

8 de abril de 2014

E se a participação num “reality show” fosse trabalho subordinado?

Um dos litígios mais frequente prende-se com a qualificação de um contrato como sendo "de trabalho" ou "de prestação de serviços". A razão de ser está na (alegada) rigidez da legislação laboral. Notamos frequentemente uma "fuga" ao Direito do trabalho, nomeadamente, por causa do regime de cessação do contrato de trabalho, através de contratos de prestação de serviços ("recibos verdes") que, na prática, são típicos contratos de trabalho.


Em bom rigor, as partes são livres para contratar e para definir o objeto e o modo da atividade a prestar e a respetiva remuneração. Todavia, não são livres para escolher o modelo contratual. Por outras palavras, o regime jurídico aplicável resulta do modo de prestação da atividade, independentemente da vontade das partes ou da designação dada ao contrato.


Assim, podemos afirmar que se trata de um contrato de trabalho quando: (i) o beneficiário da atividade pode determinar ou controlar o local e o tempo de prestação da atividade; (ii) os instrumentos de trabalho pertencem ao beneficiário da atividade ou são por ele disponibilizados; (iii) o prestador da atividade recebe uma remuneração certa e periódica; (iv) o prestador da atividade tem direito a períodos de não trabalho remunerados (por exemplo, férias) ou a subsídios de férias e de Natal (ainda que sob uma diferente denominação); (v) a atividade é prestada em regime de exclusividade; (vi) o prestador não se pode fazer substituir no cumprimento das suas obrigações; (vii) o beneficiário controla a assiduidade e a execução do serviço; e (viii) o prestador está inserido na organização do empregador.


Em 2009, o Supremo Tribunal Francês ("Cour de Cassation") apreciou os reflexos laborais de um "reality show": a Ilha da Tentação. Colocou-se a questão de saber se os participantes prestavam a sua atividade à produtora nos termos de um contrato de trabalho. Ora, este Tribunal considerou que entre a produtora e os participantes existia uma relação de trabalho subordinado, visto que os participantes deviam (i) cumprir as instruções e as diretrizes da produtora (por exemplo, algumas cenas foram repetidas para melhorar os "momentos-chave" do programa), (ii) participar em atividades e reuniões determinadas pela produtora, (iii) cumprir as regras do programa unilateralmente definidas pela produtora e (iv) observar as horas de acordar e de adormecer determinadas pela produtora. Por outro lado, a atividade era prestada num local determinado pela produtora, os participantes estavam permanentemente vigiados por câmaras, não podiam abandonar o local ou comunicar com o exterior e recebiam uma remuneração como contrapartida pela alienação da sua vida pessoal durante um determinado período de tempo.


Esta jurisprudência, amplamente discutida em França, permite considerar como atividade laboral a exposição do envolvimento pessoal e sentimental de uma pessoa, mediante retribuição, no âmbito de organização e sob autoridade de um empregador.


Caso seja aceite entre nós, esta jurisprudência aumentará significativamente o espaço de intervenção do Direito do trabalho na sociedade.


Nota: artigo publicado no Jornal Oje de 01.04.14.


O caso jurisprudencial referido no texto pode ser consultado aqui.

1 de abril de 2014

Contrato de trabalho a termo: o motivo existe?

Em 1976, o contrato de trabalho a termo podia ser celebrado por prazo certo, tinha uma duração máxima de três anos e devia ser reduzido a escrito. A menção à natureza transitória do trabalho a prestar ("serviço determinado" ou "obra concretamente definida") só era exigida no contrato de trabalho com duração inferior a seis meses. Assim, o contrato de trabalho a termo certo com uma duração igual ou superior a seis meses podia ser sucessivamente renovado até ao máximo de três anos sem necessidade de justificação do seu carácter temporário.

Em 2014, o contrato de trabalho a termo rege-se por um conjunto de normas muito rigoroso e tem sido objeto de um escrutínio exigente pelos nossos tribunais. Este tipo de contrato deve: (i) ser reduzido a escrito; (ii) conter a menção expressa dos factos que justificam a necessidade temporária da empresa; e (iii) estabelecer a relação entre o motivo e o prazo estipulado.

Assumimos empiricamente que o motivo mais utilizado nos contratos a termo é o "acréscimo excecional de atividade da empresa", isto é, aquele que comporta maiores dificuldades de demonstração.

Desde logo, a cópia da expressão legal não basta para justificar a celebração do contrato a termo, sendo necessário indicar factos que permitam ao tribunal avaliar a existência de uma necessidade temporária à data da celebração do contrato ou das suas renovações. De igual modo, não será suficiente acoplar ao "acréscimo excecional de atividade da empresa" o "aumento do número de clientes e de vendas", porque se mantém o seu carácter vago e genérico. Ainda que assim não se entendesse, surgiria sempre a questão do carácter "excecional" desse aumento.

O Código do Trabalho apresenta um "catálogo" amplo de motivos que permitem a contratação a termo, a saber: (i) substituição de trabalhador ausente (por exemplo, por doença ou durante o gozo de licença de parentalidade); (ii) atividade sazonal (por exemplo, na agricultura ou na restauração associada à época balnear); (iii) execução de tarefa ocasional ou serviço determinado precisamente definido e não duradouro (por exemplo, a criação de uma base de dados); (iv) execução, direção e fiscalização de trabalhos de construção civil; (v) lançamento de nova atividade de duração incerta, bem como início de laboração de empresa ou estabelecimento pertencente a empresa com menos de 750 trabalhadores; (vi) contratação de trabalhador à procura do primeiro emprego; e (vii) contratação de trabalhador em situação de desemprego de longa duração.

Ora, as empresas têm frequentemente motivos para contratar a termo, mas inexplicavelmente não escolhem o fundamento mais adequado para o caso concreto.

Competindo ao empregador a prova dos factos que justificam a celebração do contrato a termo, o risco de uma fundamentação insuficiente ou desfasada da realidade reside na conversão automática do contrato a termo em contrato de trabalho por tempo indeterminado e, por conseguinte, na qualificação do trabalhador como "efetivo" da empresa. Nesta situação, a comunicação de caducidade do "falso" contrato de trabalho a termo corresponderá a um despedimento ilícito com as consequências conhecidas (por exemplo, o direito à reintegração ou a uma indemnização por antiguidade).

Em suma, o paradoxo de a necessidade temporária mais difícil de demonstrar ("acréscimo excecional") ser a mais utilizada nos contratos de trabalho a termo poderá ser ultrapassado com um conhecimento mais profundo da lei e das decisões dos nossos tribunais.

O desconhecimento da lei não aproveita a ninguém.


Nota: artigo publicado no Jornal Oje de 25.03.14.